terça-feira, 4 de novembro de 2008

De onde vem “a lei de talião”?


Pasquale Cipro Neto*

Quando se discute a questão da criminalidade, sempre há quem defenda a aplicação da lei do “olho por olho, dente por dente”, que consiste em impor ao delinqüente castigo idêntico ao delito por ele praticado. Costuma-se chamar essa “lei” de “pena de talião”. Ou será “Talião”?

Quem grafa “Talião” talvez suponha que se trate de personagem histórico, possivelmente o “pai” da lei. Surge, então, o mistério: quem terá sido esse tal de Talião? Quando viveu? Onde nasceu? Que fim levou?

O senhor “Talião” nunca existiu. Trata-se apenas da forma portuguesa de “talionis” (do latim), da mesma família de “talio”, “talis”, “tale”, da qual provém a nossa palavra “tal”, que tem, entre outros, o significado de “semelhante”, “igual”, “análogo”, e se usa também nas expressões “tal qual” e “tal e qual”, que indicam idéia de igualdade. No “Aurélio”, o primeiro exemplo que se dá no verbete “tal” é este: “Tal amor não se encontra facilmente”. Na frase, “tal” corresponde a “semelhante”, “igual”. A lei é de talião justamente porque determina que o criminoso sofra tal qual fez sua vítima sofrer.

Por falar em “Aurélio”, no verbete “pena” encontra-se a expressão “Pena de talião” e nela a seguinte observação: “Atenção: escreve-se ‘talião’, com minúscula, pois não é nome próprio”. Sobra o gostinho de quero mais, já que o dicionário não explica detalhadamente de onde vem a expressão.

A lei de talião lembra “retaliar”, que vem do latim “retaliare” e é da mesma família de “talio”, “talionis”, ou seja, de “talião”. Significa “tratar segundo a lei de talião”, “revidar com dano igual ao dano recebido”, “impor a pena de talião”.

“Retaliar” e “retaliação” são duas das palavras mais ouvidas e lidas depois dos atentados ocorridos nos Estados Unidos em 2001. Para muitos, no entanto, esses atentados é que foram a própria consumação da “lei de talião”, ou, para os que preferem alguns versos de Geraldo Vandré, foram “a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar” (a bela canção “Aroeira”). Até a data da derrubada das torres gêmeas (11 de setembro, dia do golpe contra Salvador Allende, no Chile) foi arrolada por muitos como prova da concretização da tal lei. Como se sabe, o golpe no Chile, ocorrido em 1973, foi um dos tantos que contaram com a decisiva participação da CIA.

É bom não confundir “retaliar” com “retalhar” ou “retaliação” com “retalhação”. A semelhança fonética pode produzir estragos. “Retalhação” é “o ato de retalhar”, ou seja, transformar em retalhos.

Pois bem, dadas as circunstâncias, “talião”, “retaliar” e “retaliação” foram apenas um pertinente pretexto para um breve passeio por caminhos da etimologia (parte dos estudos lingüísticos que se ocupa do estudo da origem e da evolução das palavras). É ela que nos ensina, por exemplo, que “salário” vem de “sal” e que “carrasco” vem de Belchior Nunes Carrasco, verdugo que teria vivido em Lisboa. “Carrasco” também é sinônimo de “algoz” (cuja pronúncia erudita é “algôz”). A palavra “algoz” é de origem árabe e, segundo o “Aurélio”, significa ”invasor”, “conquistador”, mas, segundo o “Houaiss”, significa “nome da tribo onde geralmente se recrutavam os carrascos”. Como se vê, às vezes nem os dicionários se entendem, o que não é motivo para desistir da pesquisa e da divulgação da etimologia, o que, na área médica, é particularmente importante e interessante.

Então, caros doutores, que tal explicar aos pacientes que “válvula” é o diminutivo de “valva”, ou seja, é uma “valva pequena”? Pode-se aproveitar para informar também que as terminações “-ulo” e “-ula”, presentes em “válvula”, “nódulo”, “óvulo”, “glóbulo” e “película”, por exemplo, indicam noção de diminutivo, o que permite que se conclua que os nódulos (eta palavrinha danada!) nada mais são do que pequenos... Pequenos nós, é claro, assim como os glóbulos (os vermelhos e os brancos, que temos no sangue) são globos pequenos, os óvulos são ovos pequenos, a película é uma pelezinha e assim por diante.

Até a próxima. Um forte abraço.

* Pasquale Cipro Neto apresenta o programa "Nossa Língua Portuguesa" na TV Cultura e escreve no jornal Folha de S. Paulo
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