Por Sousa Neto - Ouvi vozes altas que pareciam zangadas, tão agressivas quanto o som da festa próxima, e fui à janela ver o que ocorria na rua. Diante de mim, entre precárias luzes noturnas e os rastros de perfumes dos que corriam ao show, encenou-se o espetáculo da emancipação feminina, talvez o mais importante do mundo que o mundo não viu naquela noite turva e diversamente cheirosa.
Testemunhei a rebelião de uma única mulher, cujos braços magros e pretos abarcou todas as vontades e razões femininas sufocadas ao longo de toda a história humana: com ímpeto, a catadora de latinhas desfez-se do saco vazio que carregava entre os dedos e atirou-o ao vento como quem se liberta de amarras doídas. Respondeu com desdém à bronca do companheiro e nem deu ouvidos às ordens de reaver o saco, que, neste momento, o sopro do céu já havia carregado para longe, bem longe.
Como de costume em noites festivas, naquela não foi diferente ou foi diferente: cobriu-se com sua mais nova roupa velha e deixou o casebre disposta a voltar com o soco cheio de latinhas ou, talvez, já tivesse saído de casa determinada a se rebelar contra o mundo e maldizer as latinhas. Enquanto isso, o companheiro, entre suas razões matemáticas e machistas, já previa a adição de um bom lucro: somando seu alumínio ao que seria angariado pela mulher, fariam alguns tostões nas próximas horas, mas a conta não deu certo: não houve latinhas, não houve dinheiro, e não houve episódio mais farto aos meus olhos do que o que se engendrou a poucos passos de minha janela. No curso entre a vila, onde habita miseravelmente, e o lugar do show, onde recolheria os vasilhames descartados pelos bebedores, ela rebelou-se contra as latinhas e contra tudo, e nem a ameaça de mais uma surra enterrompeu seu gesto e nem o riso dos transeuntes intimidou o seu grito.
Era uma catadora de latinhas, mas, naquela noite, queria ser uma mulher: desejava correr à festa, mas não para catar latinhas; queria mover pernas e braços ao som da música, mas não para catar latinhas; tinha a vontade de buscar os amigos, olhar para outros homens, e querer apenas o seu, mas desprezar as latinhas; precisava vê as novidades, olhar os artistas, brincar, beber, e descartar a própria latinha, e se orgulhar disso.
Para os que ligeiramente passavam por ali, e riam ou lamentavam, era apenas um desentendimento de um casal de bêbados, mas digo que era mais do que o histórico litígio entre gêneros, homem e mulher que se conflagram com a mesma força que se amam; vi no saco de latinhas correndo ao vento a ruptura feminina definitiva com a submissão e, mesmo que aquela cantadora pobre não vá a lugar nenhum, abriu portas para que muitas mulheres corram além.
Testemunhei a rebelião de uma única mulher, cujos braços magros e pretos abarcou todas as vontades e razões femininas sufocadas ao longo de toda a história humana: com ímpeto, a catadora de latinhas desfez-se do saco vazio que carregava entre os dedos e atirou-o ao vento como quem se liberta de amarras doídas. Respondeu com desdém à bronca do companheiro e nem deu ouvidos às ordens de reaver o saco, que, neste momento, o sopro do céu já havia carregado para longe, bem longe.
Como de costume em noites festivas, naquela não foi diferente ou foi diferente: cobriu-se com sua mais nova roupa velha e deixou o casebre disposta a voltar com o soco cheio de latinhas ou, talvez, já tivesse saído de casa determinada a se rebelar contra o mundo e maldizer as latinhas. Enquanto isso, o companheiro, entre suas razões matemáticas e machistas, já previa a adição de um bom lucro: somando seu alumínio ao que seria angariado pela mulher, fariam alguns tostões nas próximas horas, mas a conta não deu certo: não houve latinhas, não houve dinheiro, e não houve episódio mais farto aos meus olhos do que o que se engendrou a poucos passos de minha janela. No curso entre a vila, onde habita miseravelmente, e o lugar do show, onde recolheria os vasilhames descartados pelos bebedores, ela rebelou-se contra as latinhas e contra tudo, e nem a ameaça de mais uma surra enterrompeu seu gesto e nem o riso dos transeuntes intimidou o seu grito.
Era uma catadora de latinhas, mas, naquela noite, queria ser uma mulher: desejava correr à festa, mas não para catar latinhas; queria mover pernas e braços ao som da música, mas não para catar latinhas; tinha a vontade de buscar os amigos, olhar para outros homens, e querer apenas o seu, mas desprezar as latinhas; precisava vê as novidades, olhar os artistas, brincar, beber, e descartar a própria latinha, e se orgulhar disso.
Para os que ligeiramente passavam por ali, e riam ou lamentavam, era apenas um desentendimento de um casal de bêbados, mas digo que era mais do que o histórico litígio entre gêneros, homem e mulher que se conflagram com a mesma força que se amam; vi no saco de latinhas correndo ao vento a ruptura feminina definitiva com a submissão e, mesmo que aquela cantadora pobre não vá a lugar nenhum, abriu portas para que muitas mulheres corram além.
0 comentários:
Postar um comentário