Conheça Zabé da Loca, uma mulher que toca a flauta típica do Nordeste: o pífano
O Globo Rural apresenta uma dessas personagens incríveis que a gente encontra pelo Brasil afora. Uma mulher que toca a flauta típica do nordeste: o pífano. Ela é conhecida como Zabé da Loca.
Loca é uma gruta pequena. Na reportagem de Helen Martins e Francisco Maffezoli Junior você vai entender porque a Isabel, ou Zabé, é da loca.
Na dureza das pedras crescem cactos. Na aridez do cenário, surgem personagens que só o sertão parece fazer brotar. É assim na região do Cariri Paraibano, no município de Monteiro. Seguimos para a zona rural para encontrar uma moradora ilustre. Ela é conhecida como Zabé da Loca.
A idade não tirou seu senso de humor. Dona Zabé tem 86 anos e passa boa parte dos dias na varanda de sua casa azul, observando o movimento, que não é muito, e lembrando a sua história, que não é pouca. “Eu já trabalhei muito. Trabalhei tanto que fiquei velha no tempo. Pai gritava, nós éramos quatro, era um em casa mais a mãe e os outros no roçado mais ele. Me criei trabalhando, minha filha”, conta Isabel Marques da Silva.
Zabé é nascida em Buíque, Pernambuco. Ainda adolescente foi para o município de Monteiro, na Paraíba, e há sete anos vive no assentamento Santa Catarina, em uma casa que ganhou do Incra no processo de reforma agrária. Ela diz que não gosta de lá e que prefere a serra. “Eu gosto da minha serra. Eu não vou, porque a subida pra mim é ruim demais”.
Ela prefere mostrar o lugar da antiga casa sem sair da atual e aponta para um grupo de pedras. Uma delas costumava ser sua morada. É daí que vem o apelido “Zabé da Loca”. Loca quer dizer gruta, caverna. “Eu morei 25 anos debaixo dela. Era eu e os filhos. Tinha um marido, mas o marido morreu. Daí ficou eu e os dois filhos. Fui feliz, graças a Deus”.
Fôlego e ouvido são essenciais para a arte que deu fama a ela: o pífano. Zabé é conhecida como a rainha do pífano. Ela conta que aprendeu a tocar o instrumento com o irmão, aos 10 anos. “To com vontade de parar com isso, porque isso acaba com o fôlego, acaba com os pulmões. O cigarro eu fumo só um pouquinho”, acredita.
Além do pífano, a vida passada na antiga loca define a figura de Zabé. O apelido acabou por virar seu nome artístico.
Tentamos convencê-la a visitar a loca mais uma vez. “Sei lá, minha filha. Se for muito cedinho...“. Com a promessa de sair cedo, deixamos a casa de dona Zabé.
No dia seguinte, bem cedinho, estamos de volta. Ela já está acordada, tomando um cafezinho. “Eu acho que não vou, não. Sei não. Eu vou resolver”, diz ela.
Dona Zabé teve três filhos. Uma filha foi criada por outra família, um filho é doente e o outro morreu. Quem cuida dela hoje é Josivane Caiano.
A senhora troca de roupa e concorda em nos acompanhar. Para chegar até a antiga casa de dona Zabé é preciso subir uns 200 metros. O caminho é feito bem devagarzinho e traz muitas lembranças.
Josivane ajuda na subida e na conversa. “Naquele tempo eu tinha mais força”, diz dona Zabé. Logo depois, ela chama a atenção do grupo “vocês estão subindo mais devagar do que eu!”.
Entramos na loca e nos acomodamos no jirau. Dona Zabé se emociona. “Eu ainda to acostumada aqui. Eu me lembro de tudo daqui. Tenho a maior vontade de voltar para o meu canto, mas eu não tenho mais meu filho, não tenho uma filha, não tenho mais marido”, lamenta.
Nas lágrimas, a saudade do tempo dentro da gruta. Quase um terço de sua vida.
Há muitos anos dona Zabé vivia em uma casa de taipa. Com o passar do tempo e as chuvas, a casa foi deteriorando, até que a casa caiu. Sem marido e com dois filhos para criar, ela precisava encontrar um abrigo. Numa região cheia de pedras, não foi difícil encontrar.
O pequeno espaço formado por uma pedra inclinada e outra que serve de apoio foi bem aproveitado com a construção de duas paredes de taipa, uma nos fundos e outra na frente, com porta e janela. Hoje, a prefeitura de Monteiro ajuda na manutenção da loca.
Dona Zabé se levanta para mostrar onde costumava cozinhar. “Era assim, riscava o fósforo e fazia o fogo. Botava as panelas no fogo, botava feijão, botava carne, se quisesse. Aí pronto. Era só comer, pronto. A gente fazia de comer, comia, aí quando dava meio dia eu corria pra cama, ficava lá, dormia”, conta.
Na loca não havia medo e dona Zabé diz que foi feliz. Passou necessidade, mas nunca fome. Do lado de fora, ela se lembra do trabalho na roça para sustentar os filhos. “Eu plantava milho, plantava feijão por isso tudo. É que eu não posso mais trabalhar agora, não, mas se eu pudesse trabalhar, eu estava era aqui. Aqui é meu. Aqui eu comprei, lá foi o Incra que deu”.
Não demora para dona Zabé sentir falta de Josivane. “Essa mossa aqui, quando eu morrer, com uns oito dias, um mês, eu venho aqui buscar ela”, brinca.
“Nem pense, nem pense. Eu não vou não”, diz Josivane.
A ligação entre Josivane e dona Zabé é quase de mãe e filha. As duas estão juntas há muitos anos. “Desde pequena eu convivo com Zabé. Minha mãe ia pra cidade e a gente ficava com Zabé, eu e mais quatro irmãos. Hoje a gente não tem mais como se afastar. Ela adoece quando eu saio de perto dela. Acho que sente mais segurança”, acredita a jovem.
Ao lado da Loca, Zabé ensaia as notas do hino nacional. A música, ao som do pífano de dona Zabé e sua banda foi parar em CD. Zabé ainda morava na gruta quando foi descoberta, aos 79 anos, pelo pessoal do projeto Dom Helder Câmara, do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Saída da loca, Zabé foi ganhando reconhecimento. Aos 85 anos, quem diria, recebeu o prêmio Revelação da Música Popular Brasileira em 2009. Ela coleciona diplomas importantes e muitas viagens de trabalho. As viagens e shows pelo Brasil mudaram a vida de Zabé e de muita gente ao redor.
“A dificuldade quando a gente começou a viajar, sete anos atrás, era de chegar no hotel e não saber preencher a fichinha. Eu ficava morrendo de vergonha, meu Deus do céu. Eu ficava empurrando para os outros fazerem. Aí me perguntavam ‘por que você não faz?’ e eu ficava com vergonha de dizer que não sabia ler. Quando eu comecei a preencher aquela fichinha eu disse ‘agora eu já sei, agora não tenho mais vergonha, não’. Antes de alguém pegar, eu já pegava. Falava ‘me dá a minha fichinha porque eu vou preencher a minha e as dos outros’”, revela Josivane.
Antônio Soares da Silva, seu Pitó, tem história parecida. Ele também faz parte da banda. “Da primeira vez que fui pra Brasília com ela, fiquei na rodoviária atado, sem saber onde estava o sanitário, porque não sabia o nome do sanitário, onde era. Estava vendo, mas não sabia. Daí apareceu esse Brasil Alfabetizado, eu fui, comecei e hoje eu leio até o jornal”, conta.
Com a fama de Zabé, a já letrada Josivane fez um projeto e venceu o prêmio do Ministério da Cultura. Com a verba que recebeu, 10 mil reais, criou uma escola de músicos. Seu Pitó dá aula de percussão e mostra que tem muito jeito com a criançada.
Dona Zabé ensina o pífano a Daniele, de 11 anos. Ela deve aprender logo, assim como Ranielson, que é neto de pifeiro, mas só foi aprender a tocar com o projeto de Zabé.
A banda dos meninos, formada há dois anos, já participa de festivais no estado da Paraíba. “Meu sonho é poder ampliar este projeto para outras áreas que não tenham Zabé como estímulo. Que não tem músicos, mas que tenham pessoas ali que carreguem uma cultura, que tenham uma raiz forte na música, na cultura, na arte”, afirma Josivane.
Cultivar a raiz, a raiz cultural do nosso povo, e fazer brotar desejos antes nem sonhados. Josivane que se tornar assistente social, seu Pitó que escrever suas próprias canções e os meninos da banda querem se tornar profissionais da música.
E o sonho de dona Zabé? “Meu sonho é trazer tudo de casa e vou me mudar para aqui”, diz.
A Zabé quer voltar pra loca, mas bem que ela gosta da vida de celebridade. Adora viajar e diz que vai de carro, de avião, do que aparecer. É bem festeira, diz que tendo festa, ela já está lá.
Cariri Ligado
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