sábado, 19 de outubro de 2013

MARIA MULUNGU



MARIA MULUNGU
( José Assimário Pinto)

A Rua 05 de Agosto, na cidade de Itaporanga, era meu mundo maior, sobretudo a velha casa de pedra, situada no oitão da Igreja Nossa Senhora do Rosário, e onde nela habitaram até a morte meus entes queridos – Maria Carolina Pinto da Silva (Neném) e Moisés Misael de Paula (Misa), meus avós paternos.

Às vezes fecho os olhos e imagino aquela rua, casa a casa.

O chão arenoso onde batíamos pelada com bola de borracha, a poeira às vezes cobrindo, perfilo os amigos de infância, hoje dispersos na vida, ocupando os mais variados cargos da atividade humana.

Chegara à Itaporanga um novo Pároco, egresso da cidade de Cajazeiras/PB, e nomeado que fora pelo então Bispo Diocesano, Dom Zacarias Rolim de Moura.

O jovem Padre logo demonstrou a que viera: Fazer Inovações.

Nessa sua tarefa, começou por fundar uma entidade chamada Cruzadinha, que seria formada por meninos e meninas adolescentes da terra, muitos dos quais já partiram desta para outra vida.

Numa tarde, depois do sol descambar no horizonte fui conhecer MARIA MULUNGU.

Ela morava numa casa de taipa da Rua 05 de Agosto, esquina com esquina da casa do Sr Zú Silvino, irmão de Totinha,e pai de Paizinha, que viria a ser uma das maiores amigas de minha irmã Mazinha, ou Maninha, de que já falei anteriormente, sobrevivente da peste que assolou a região - a poliomielite – e que viria a tornar-se Desembargadora de Justiça, no vizinho Estado do Rio Grande do Norte, na Capital Potiguar, Natal.

Maria, como viria a chamá-la quando bati à sua porta, de dentro de casa respondeu:

- “É menininho de Gonzaga? – ela já me conhecera, ou fora avisada que viria a vê-la.

E eu respondi:

- Sim Dona Maria, sou eu mesmo.

Abriu a porta e eu sentado num tamborete “pé de priquito” como se chamava à época, pus-me a conversar:

- Maria, venho aqui em nome de Padre Zé Sinfrônio, dizer-lhe que amanhã, depois da missa das oito, passaremos, em procissão, por aqui e você foi escolhida, dentre as pessoas que serão visitadas.

- E “pru quê”? Disse-me ela.

Então eu fiz um dos primeiros discursos da minha vida, à luz de um candeeiro que Maria acendeu.

- Porque você é a figura mais importante dessa terra, Itaporanga.

Você é bonita, uma negra faceira, humilde, boa e nunca ofendeu a ninguém.

Maria, na verdade, tinha origem desconhecida, e se instalara na casa abandonada que servia de habitat para os vagabundos e doidos de Itaporanga.

Ela se dizia descendente de negro africano, que aportara no Brasil há muitos anos e ela, “nega cativa” , fugida de uma senzala, fora morar pra aquelas bandas.

Maria, na conversa que tivemos, quando conversei consigo, nos tempos da Cruzadinha e ocupando o cargo de General, autoridade máxima da entidade religiosa e de cunho social, era uma velhota de seus 50 e poucos anos.

No corpo, o vestígio de quem fora uma cabocla bonita, ali se apresentava a cabocla alquebrada pelo sofrimento. Os olhos antes, certamente negros e belos, não passavam de duas tochas avermelhadas de tanto chorar de dor e solidão. A casa onde ela morava não tinha móveis, o chão era de barro batido e as paredes furadas pelo tempo, sobressaindo pedaços de varas com que fora construída.

No quarto que ocupava tudo tinha o mesmo jaez, uma rede velha pendurada na parede, um candeeiro aceso, posto no chão, a fumaça preta subindo e mesclando o telhado de fuligem que fazia descortinar pelas frestas um punhado de estrelas no bendito luar do sertão, em nuvens que corriam de um lado para o outro, avizinhando chuvas que cairiam naquele solo querido.

Perguntei então a Maria:

-Por que tu não te casaste, já que eras tão bonita?

Ela em sua sabedoria me respondeu:

- Do pecado que levo desta vida, consta um meu filho, não quis dividir com ninguém, minha beleza e sim dá-la pra todo mundo. Fui mulher de todos os coronéis, mas não fui de ninguém, pois aqui no meu peito tem um buraco e no passado, olho e só vejo cinzas.

Maria, até no descrever sua formosura, penitenciava-se, eu vi nela aquela mulher do passado e a grandeza de uma alma indescritível, dentro dela, sem eira e nem beira, sem ter passado por qualquer banco de escola, analfabeta de pai e mãe e que conservava tanta grandeza.

Maria Mulungu, me disse-me, desassombrada, que à noite em sua casa, tinha um papo cerrado, formado por Zezim Doido, Irineu Primo, Ciço Socó, tio L e outros da região. O que esses doidos conversavam, eu imagino, ela contou-me, mas não vou nem descrevê-los, tamanhas as atrocidades das conversas desconexas e tresloucadas

Mas a verdade é que no dia seguinte, o senhor Luiz Guimarães, conduzindo a cruz de Cristo, em 2 fileiras, uma composta de mulheres, outra de homens, a Cruzadinha na frente, o Padre no meio, coberto de paramentos e com o Santíssimo na mão, parou em frente de sua casa.

Eu, moleque sapeca, corri na frente e gritei, Maria o povo chegou.

Ela foi perguntando, O café veio?

Eu respondi.

- Veio quentinho e fresco, acompanhado com pão e manteiga da terra, um pedaço de queijo e um ovo estrelado.

E ela espirituosa me disse:

- Sabia que pobre um dia seria gente.

Essa procissão de visita aos pobres da cidade acontecia no Domingo de Ramos, e era uma das coisas mais bonitas que vi dentre as promoções do Padre Zé.

Maria viveu mais de 100 anos, e quando morreu eu já havia saído da minha terra para estudar fora, amiga Larissa Isabella, é uma historia triste, mas verdadeira.

O nordestino é, como disse o grande Euclides da Cunha, antes de tudo, um forte. E não tem o raquitismo dos mestiços, neurastênicos do litoral.


Campina Grande, 17 de outubro de 2013.

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